A isenção de base de cálculo como benefício não tributado pelo IRPJ e pela CSL
O combate às desigualdades regionais é ressaltado em diversos dispositivos da Constituição Federal de 1988 (CF/88), tendo sido alçado como um dos objetivos fundamentais de nossa República Federativa pelo constituinte originário (artigo 3°, incisos II e III).
Entre os variados meios pelos quais o Estado pode lançar mão para atingir esse fim (combate às desigualdades regionais), destaca-se a possibilidade de os entes políticos concederem isenções, reduções de base de cálculo, créditos presumidos, realizarem anistias e remissões relativamente a impostos, taxas e contribuições. Tais formas de concessão de benefícios fiscais são comuns em estados da Federação que buscam incentivar o desenvolvimento de suas respectivas regiões geográficas, especialmente por meio do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS).
Tais benefícios fiscais de ICMS, por representarem dispensa de recolhimento de tributos estaduais, impactam a apuração do Imposto sobre a Renda da Pessoa Jurídica (IRPJ) e da Contribuição Social sobre Lucro Líquido (CSL). Em vista disso, contribuintes defendem que qualquer ingerência da União na política fiscal de incentivo de desenvolvimento regional realizada por meio de benefícios fiscais de ICMS afrontaria o pacto federativo e seria uma invasão da competência tributária estadual.
Nesta linha, em 2017, em sede dos EREsp nº 1.517.492–PR, de relatoria do ministro Og Fernandes, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) entendeu que créditos presumidos de ICMS não deveriam compor a base de cálculo do IRPJ e da CSL.
A ministra Regina Helena Costa, cujo voto de divergência foi adotado pela primeira seção como voto condutor, destacou que os incentivos fiscais são conferidos pelo legislador estadual para incentivar e “[…] facilitar o atendimento a um plexo de interesses estratégicos para a unidade federativa, associados às prioridades e às necessidades locais coletivas”. Tratar-se-ia, portanto, de instrumento legítimo de política fiscal, sendo que a União, por esse motivo, ao considerar esse crédito como lucro tributável, estaria esvaziando-o, provocando uma interferência política no benefício concedido pelo Estado. Em outras palavras, a União estaria retirando com uma das mãos o que o Estado-membro ofereceu com a outra, aniquilando o sentido do incentivo fiscal. Nesse sentido foi a tese vencedora, reafirmando o Pacto Federativo estabelecido na Constituição.
Destacamos que o acertado entendimento do STJ tem influenciado os Tribunais Regionais Federais por todo o país [1].
No mês passado, dando continuidade às discussões sobre a tributação pelo IRPJ e CSL de benefícios fiscais de ICMS, o STJ foi incitado a julgar o REsp nº 1.968.755—PR, de relatoria do ministro Mauro Campbell Marques, pelo qual uma empresa de Curitiba buscou aplicar o mesmo entendimento proferido no EREsp nº 1.517.492–PR para as isenções e as reduções de base de cálculo do ICMS. Os ministros entenderam, contudo, inviável tal aplicação, por ser impossível excluir da base de cálculo do IRPJ e da CSL valores que nunca ali estiveram, uma vez que não foram contabilizados como receitas. O STJ, ainda no mesmo precedente, indicou que tais incentivos fiscais (isenções ou reduções de base de cálculo do ICMS), por força do artigo 30, § 4º, da Lei nº 12.973, de 13 de maio de 2014 (Lei 12.973/14), poderiam ser considerados como subvenções para investimentos e, portanto, excluídos da apuração de tais tributos, desde que atendidos os requisitos previstos na lei ordinária.
Assim, o STJ proferiu o entendimento de que ao crédito presumido de ICMS se aplica a tese do Pacto Federativo exposta no EREsp n° 1.517.492—PR, ao passo que a todos os demais benefícios fiscais deve ser aplicado o disposto no artigo 30 da Lei 12.973/14.
No entanto, essa distinção não nos parece a mais adequada por quatro motivos, os quais passaremos a expor a seguir.
O primeiro motivo diz respeito ao fato de que, diferentemente do que foi sustentando no acórdão do REsp nº 1.968.755—PR, as isenções e reduções de base de cálculo de ICMS representam, sim, receitas. Sob o ponto de vista contábil, o Pronunciamento Técnico CPC 07 (RI) (CPC 07), em seu item 12, esclarece que uma subvenção (independentemente da forma de sua operacionalização) “[…] deve ser reconhecida como receita ao longo do período e confrontada com as despesas que pretende compensar […]”, apresentando, em seu item 15, as razões pelas quais a subvenção recebe tratamento contábil de receita. Assim, o argumento sustentado pelo ministro Mauro Campbell no sentido de que “[…] se qualquer pessoa recebe uma isenção de qualquer tributo […] ela simplesmente deixa de ser obrigada ao pagamento deste” e que isso “[…] não significa que ela esteja recebendo um ingresso de receita nova [….], mas simplesmente que está deixando de ter uma saída de despesas” não se sustenta sob a perspectiva contábil.
Os itens 38D e 38E do CPC 07 não deixam dúvidas de que isenções ou reduções de tributos (1) atendem ao conceito de subvenção governamental e (2) devem resultar em registro contábil do “imposto total no resultado como se devido fosse, em contrapartida à receita de subvenção equivalente, a serem demonstrados um deduzido do outro”. Desse modo, seja o benefício concedido por intermédio de um crédito presumido de ICMS, seja uma isenção ou redução de base de cálculo, todo e qualquer benefício que implique dispensa de pagamento de tributos é economicamente uma receita de subvenção.
Além disso, cumpre mencionar que, de acordo com o artigo 177 da Lei nº 6.404, de 15 de dezembro de 1976 (Lei 6.404/76), a escrituração das empresas deve obedecer aos princípios da contabilidade geralmente aceitos, de maneira que não se trata de uma escolha, mas, sim, de uma obrigatoriedade. Portanto, a contabilização de benefícios de ICMS, tais como, isenção e redução de base de cálculo deve ser a mesma que créditos outorgados/presumidos, o que demonstra que o argumento de que tais benefícios não representariam reconhecimento de despesas não poderia prosperar.
O segundo motivo diz respeito ao fato de que, economicamente, crédito presumido, isenção ou redução da base de cálculo são todas formas de renúncia de receita por parte do Estado. Em qualquer um desses três casos, o Estado, podendo arrecadar, opta por não cobrar certo tributo, visando ao desenvolvimento de certo mercado e/ou região. Isto é, os três são instituídos com o mesmo propósito (incentivar os agentes econômicos a investir) e têm, ao fim, o mesmo efeito nas contas públicas (redução de ingresso nos cofres públicos).
Portanto, não faz sentido econômico conceder um tratamento ao crédito presumido de ICMS e outro tratamento para a isenção e a redução da base de cálculo. Ambos os institutos geram os mesmos efeitos econômicos, devendo ser tratados da mesma maneira para fins de política fiscal estadual.
Por sua vez, o terceiro motivo volta-se ao fato de o crédito presumido, a isenção e a redução da base de cálculo serem institutos juridicamente equiparáveis. Em todos os casos, por meio de uma redução ou total ou parcial da obrigação tributária, há um benefício fiscal. O Supremo Tribunal Federal (STF) já adotou posição nesse sentido. No RE nº 635.688–RS, o relator ministro Gilmar Mendes manifestou entendimento no sentido de equiparar os conceitos de redução de base de cálculo e de isenção, dispondo que “[…] embora se valham de estrutura jurídica diversa, tanto a isenção total […] quanto a redução de base de cálculo ou de alíquota […] têm semelhante efeito prático: exoneram, no todo ou em parte, o contribuinte do pagamento do tributo”. Indo além, o relator entendeu que alterar a hipótese, a base de cálculo ou a alíquota significa apenas adotar um caminho distinto para alcançar o mesmo objetivo, isto é, trata-se de “[…] estruturas jurídicas diversas para um uma mesma função: reduzir a carga fiscal imposta”.
Nessa mesma linha, em seu artigo Isenção e Alíquota Zero têm Idêntica Proteção contra Mudanças Legislativas, Heleno Taveira Torres defendeu que isenção e alíquota zero possuem equivalência funcional, e que ao artigo 150, § 6º, da Constituição Federal — que trata do subsídio ou isenção, redução da base de cálculo, concessão de crédito presumido, anistia ou remissão —, o constituinte buscou dar o mesmo tratamento, no que concerne à segurança jurídica [2].
Ora, se os institutos que viabilizam a redução da carga tributária em benefício do contribuinte são equiparados para fins, por exemplo, da limitação ao princípio da não cumulatividade, por que não deveriam ser tidos como juridicamente equivalentes para fins da aplicação do EREsp nº 1.517.492–PR? Obviamente que deveriam, sob pena de se estabelecer uma diferenciação que não possui critério de discrimen fundamentado na CF/88, o que afronta o princípio da isonomia, que é o quarto argumento que demonstra que o entendimento do STJ no REsp nº 1.968.755–PR não parece ser o mais correto.
Segundo o princípio da isonomia, deve-se tratar igualmente os indivíduos que se encontram nas mesmas condições. Por essa razão, se crédito presumido, isenção e redução de base de cálculo são jurídica, econômica e contabilmente equiparáveis, não se pode atribuir tratamento diferente aos contribuintes que gozam desses benefícios fiscais de ICMS para fins de IRPJ e CSL. Não à toa, no mesmo artigo supracitado de Heleno Taveira Torres, o jurista manifesta entendimento de que “[…] os tributos devem ser aplicados com observância dos princípios da generalidade, impessoalidade e não discriminação, ou seja, com isonomia e com regime igual para todos os que se encontram em situações equivalentes (artigo 150, II da CF/88), o que vale igualmente para os incentivos fiscais” [3].
Por esses quatro motivos, por fim, entendemos que a decisão proferida pelo STJ no âmbito do REsp nº 1.968.755—PR não é adequada, devendo ser seguida a tese do Pacto Federativo manifestada no EREsp nº 1.517.492—PR. Por consequência, toda e qualquer forma de incentivo fiscal de ICMS (crédito presumido, isenção e redução de base de cálculo) deveria ser excluída da base de cálculo do IRPJ e da CSL, pelo fato de não caber à União se sobrepor à competência tributária dos Estados de conceder benefícios fiscais para estimular o desenvolvimento regional.
Apesar de entendermos que o STJ não andou bem ao não aplicar o entendimento do EREsp nº 1.517.492–PR aos casos de isenção e redução e base de cálculo, vale destacar o acerto do tribunal ao asseverar no REsp nº 1.968.755–PR que as isenções e reduções de base de cálculo estariam sujeitas ao artigo 30 da Lei 12.973/14, fato que também é objeto de controvérsia com a Receita Federal do Brasil (RFB), que entende que benefícios fiscais de ICMS só poderiam ser tidos como subvenção para investimento se fossem concedidos para “estímulo à implantação ou expansão de empreendimentos econômicos“, o que impossibilitaria a aplicação do artigo 30 da Lei 12.973: “aos incentivos ou benefícios fiscais e financeiros fiscais concedidos de maneira incondicionada, de forma gratuita ou sem nenhum ônus ao subvencionado” (Solução de Consulta COSIT nº 12, de 25/3/2022).
O voto do ministro Mauro Campbell Marques, neste particular, destacou que a Lei Complementar nº 160, de 7.8.2017 (LC 160/17), ao adicionar os §§ 4º e 5º ao artigo 30 da Lei 12.973/14, tratou de “uniformizar ex lege a classificação do crédito presumido de ICMS como ‘subvenção para investimento‘”, o que afastaria qualquer discussão quanto à necessidade de os incentivos serem condicionados para serem tidos como subvenção para investimento.
Por todo o exposto, entendemos que o EREsp nº 1.517.492–PR deveria ser aplicado, também, aos casos de isenção e redução de base de cálculo, sendo recomendável que o STJ reveja o posicionamento adotado no REsp nº 1.968.755–PR neste particular. Mesmo que a discussão quanto ao pacto federativo não seja aplicada aos casos de isenção ou redução de base de cálculo, o que admitimos apenas para fins argumentativos, pelo entendimento destacado no próprio REsp nº 1.968.755—PR, o contribuinte poderia aplicar a norma isentiva prevista no artigo 30 da Lei 12.973/14 e, desde que atendidos os seus requisitos, não oferecer tais benefícios à tributação do IRPJ e CSL.
[1] TRF-1, 8ª Turma, ApelRemNec nº 1003703-36.2018.4.01.3100, rel. Novely Vilanova da Silva Reis, j. 23/8/21.
TRF 3, 6ª Turma, ApelRemNec nº 5000286-36.2021.4.03.6110, relator Luis Antonio Johonsom Di Salvo, j. 1/3/22.
[2] TORRES, Heleno Taveira. Isenção e alíquota zero têm idêntica proteção contra mudanças legislativas. Revista Consultor Jurídico, 4 de abril de 2018. Disponível aqui. Acesso em 29 de abril de 2022.
[3] Idem.
Fonte: https://www.conjur.com.br/2022-mai-23/opiniao-isencao-base-calculo-beneficio-nao-tributado