Não incidência do ISS sobre honorários sucumbenciais
A famigerada incidência (ou não) de ISS sobre honorários sucumbenciais está gerando grande controvérsia nos diferentes municípios do país. Isso porque, ao repartir a competência tributária, a Constituição reservou aos municípios, por meio de seu artigo 156, inciso III, o imposto sobre “serviços de qualquer natureza, não compreendidos no artigo 155, II, definidos em lei complementar“. Esses serviços, excepcionados expressamente pela Constituição de 1988, são os de transporte interestadual e intermunicipal, e que, portanto, se submetem ao ICMS no âmbito da competência tributária dos estados. Assim, compete a cada municipalidade a arrecadação a título de ISS.
Pois bem, sabe-se que os honorários podem ser contratuais, arbitrados ou sucumbenciais, esse último disciplinado no artigo 85 do Código de Processo Civil [1] que define como uma verba de natureza condenatória em decorrência de processo judicial. Ademais, o próprio Estatuto da Advocacia, Lei nº 8.906/94, também corrobora com essa definição, em seus artigos 22 e 23. Tal lei ordinária estabelece conceitos jurídicos que devem ser minimamente aproveitados em termos de legislação tributária.
Posto isso, é importante delimitarmos que os advogados são prestadores de serviço, portanto, cumprem obrigações de fazer e como tal, essas obrigações têm um critério de referibilidade em termos de liquidação e apuração da imposição devida em função dessa atividade. Nos termos do artigo 156, inciso III, da Constituição, de onde se extrai o aspecto material do ISS, tem-se o verbo e seu complemento prestar serviços, implicando em fazer (e não dar) alguma coisa em benefício de outrem, com habitualidade e finalidade lucrativa, ou seja, o fato jurídico-tributário do ISS se verifica quando consumada a prestação do serviço, envolvendo na via direta o esforço humano, e relacionando o caráter mercantil da relação entre tomador e prestador de serviço.
Logicamente, as obrigações de fazer em detrimento das obrigações de dar (exceto aquelas detalhadas nos termos da Constituição), farão surgir por conta do fenômeno da subsunção tributária a imposição do imposto sobre serviços (ISS). Que do ponto de vista da hipótese de incidência, a obrigação de fazer, no caso a prestação de serviço, irá se subsumir à hipótese de incidência do ISS, nos termos já ditos do artigo 156, inciso III, da Constituição.
Dada a controvérsia, qual seja, se incide ou não ISS sobre os honorários sucumbenciais, cada município está elaborando seus pareceres a partir das consultas tributárias formuladas. Em municípios onde o parecer foi pró-fisco, como São Paulo por exemplo, a justificativa para emissão de notas fiscais faz referência ao item 17.14 da Lista Anexa à Lei Complementar nº 116/03, norma geral atinente ao ISS. De acordo com o referido item, tem-se o serviço de “advocacia” dentre aqueles que, nos termos de seu artigo 1º, têm como fato gerador a prestação de serviços constantes da listagem e que, também, não se constituam como atividade preponderante do prestador.
Nesta senda, a argumentação pró-fisco vai no sentido de que “advocacia” englobaria tudo (prestação de serviço, ressarcimento de custas, condenação em honorários, etc). Pode-se dizer que os honorários sucumbenciais seriam uma consequência indireta do próprio contrato de prestação de serviço entre o advogado e o cliente. E em função disso, o advogado aufere sucumbência caso tenha êxito em determinado processo judicial e, portanto, estaria sujeito à incidência de ISS sobre esses valores.
Pontua-se que, em 29/6/2020, no julgamento do Recurso Extraordinário nº 784.439, o Supremo Tribunal Federal fixou a seguinte tese de repercussão geral: “É taxativa a lista de serviços sujeitos ao ISS a que se refere o artigo 156, III, da Constituição Federal, admitindo-se, contudo, a incidência do tributo sobre as atividades inerentes aos serviços elencados em lei em razão da interpretação extensiva“. Ou seja, com a possibilidade de interpretação extensiva abre-se o caminho para que os municípios tornem essas verbas ancilares, furando o arquétipo constitucional.
Surgem os seguintes questionamentos: entraria na hipótese de incidência essas verbas adicionais? Dentre elas a sucumbência? Ou se está, apesar da decisão do Supremo Tribunal Federal, protegido do ponto de vista da adequada interpretação do texto da Constituição? Explica-se.
Os honorários contratuais são estritamente pactuados no contrato de prestação de serviços entre o cliente e advogado, por ocasião da relação jurídica entre eles existente. Já os honorários sucumbenciais, estes não compõem a relação jurídica contratual estabelecida, não integrando, assim, a relação jurídica advogado-cliente, leia-se: tomador e prestador de serviços contratados.
O advogado não presta serviço ao terceiro sucumbente, pois não possui qualquer relação jurídica de natureza contratual com o mesmo. A relação entre a parte que sucumbiu e o advogado beneficiário da verba de sucumbência é uma decorrência direta da aplicação da legislação processual civil, sem qualquer vínculo ou manifestação de vontade.
Pontes de Miranda, ao tecer comentários sobre o antigo Código de Processo Civil, no artigo 20, correspondente ao artigo 85 do atual Código de Processo Civil, asseverou que: “a relação jurídica de direito privado entre a parte e seu advogado é diferente da relação jurídica de direito pré-processual e processual entre a parte vencida e o advogado da outra parte vencedora”. Assim, a relação entre advogado e cliente resulta, invariavelmente, no acertamento de honorários contratuais, convencionados na esfera da autonomia privada das partes, enquanto que, no processo judicial, surge remuneração diversa atinente aos honorários sucumbenciais.
Ora, não se confunde verba honorária decorrente do contrato de prestação de serviços com a remuneração advinda da condenação judicial, da relação processual em si, conforme determinado objetivamente pela legislação processual civil. Frisa-se que a sucumbência não integra o objeto da relação contratual, tampouco tem caráter econômico.
Veja, não se diz que não incide tributo sobre a verba condenatória de sucumbência. Ao contrário, tem incidência extremamente polêmica para as justiças estaduais, conforme a Resolução nº 333/2009 do CNJ, onde a partir do artigo 35 tem-se uma disciplina orientativa para todos os tribunais do Brasil, com relação à forma e aplicação da legislação tributária. Nessa resolução, há enfatização em aplicar justamente a legislação do Imposto de Renda.
Em última análise, há problemas de ordem prática: se, hipoteticamente, precisar-se emitir nota fiscal de sucumbência, qual será o CNPJ contra o qual emitiremos a nota fiscal? E se for a Fazenda Pública, emitir-se-á contra? Mesmo a parte sendo privada, emitir-se-á no CNPJ da parte vencida, em função do contrato que tem como cliente a parte vencedora?
Pode-se inferir, conforme dito logo no início, a grande controvérsia que paira sobre o assunto. O conflito está posto. A tendência do Fisco municipal é a de exigir a emissão de nota fiscal, haja vista o interesse em aumentar sua arrecadação. Em contrapartida, poderá o advogado ou as sociedades autuadas promoverem a sua defesa no âmbito administrativo e judicial, principalmente enquanto a matéria encontra-se longe de resolução.
[1] Art. 85. A sentença condenará o vencido a pagar honorários ao advogado do vencedor.
Nicole Gonçalves é advogada, pós-graduanda em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (Ibet), pós-graduanda em Direito Empresarial pela Fundação Getúlio Vargas (FGV), MBA em Gestão Tributária pela Universidade de São Paulo (USP), membro da Comissão de Direito Tributário da OAB/SC e coordenadora do Grupo de Estudos em Direito Tributário da Jovem Advocacia de Santa Catarina.
Carol Alves Holz é sócia do Holz Cidral Advogados Associados, presidente da Comissão de Direito Tributário OAB-Joinville, pesquisadora na área de Direito Tributário, Econômico e Financeiro e autora de artigos científicos.