A bitributação do ISSQN: breves considerações

Antes de adentrarmos no assunto em si, importante recordarmos que bitributação não é sinônimo de “bis in idem”. Embora na prática ambas sejam muito usadas como tal, a bitributação ocorre quando dois entes públicos tributam através de duas normas, uma de cada ente, o mesmo sujeito passivo sobre o mesmo fato gerador, ao passo que o “bis in idem”, por sua vez, somente ocorre quando um mesmo sujeito passivo é tributado mais de uma vez, porém pelo mesmo ente público.

Além disso, em princípio o “bis in idem” não é inconstitucional, pois não há vedação expressa de tal instituto na Constituição Federal, ao contrário da inconstitucionalidade expressa da bitributação que ocorre por força do que é previsto na CF/88 quanto à distribuição da competência tributária de cada ente, de modo que se um ente público retém um imposto que não é sua competência, ele está interferindo e “passando por cima” da competência de outro.

Assim, ao contrário da bitributação, a inconstitucionalidade não expressa do “bis in idem” é, portanto, somente em tese, tanto que este último, assim como o primeiro, gozam de algumas exceções como no caso dos produtos industrializados onde incidem imposto de importação, IPI e ICMS. Nesses casos, há a presença dos dois institutos, pois compete à União reter o imposto de importação e o IPI, e o Estado o ICMS (bitributação). Segundo porque a União está duas vezes tributando o mesmo sujeito passivo (“bis in idem”).

Há também duas situações em que a bitributação é permitida como na hipótese de a União, na iminência ou no caso de guerra externa, instituir um imposto extraordinário e em situações em que houver ausência de um tratado internacional entre duas nações, pois pode acontecer de uma pessoa que reside no Brasil e recebe rendimentos provenientes de um trabalho realizado em outro País, que não é signatário, ser tributada nos dois países.

Passada tal premissa, suponhamos que uma empresa prestadora de serviços que possui como objeto social, entre outras atividades, a comercialização, assistência técnica e manutenção de máquinas, equipamentos, motores e veículos, se enquadrando, assim, nos serviços listados nos itens 14.01 e 14.02 da lista anexa à LC 116/03, foi contratada por uma empresa do ramo de mineração para prestar serviços de assistência técnica, manutenção de máquinas, treinamento e reparos em motores em todas as unidades da empresa, localizadas em várias cidades do País.

Ocorre que, a empresa terceirizada, ora contratada, entendendo ser correto o recolhimento do ISS no município onde se encontra estabelecida, faz o recolhimento do mesmo por lá. Por sua vez, a empresa mineradora, ora contratante, fez a retenção do ISS com o pagamento do imposto aos municípios em que a contratada prestou o serviço. Diante disso, a contratada propõe então uma “ação de consignação em pagamento cumulada com ação declaratória de inexistência de relação jurídico-tributária e pedido sucessivo de repetição do indébito”.

A contratada assiste razão?

Em primeiro lugar recordemos que, em tese, não caberia a contratante fazer a retenção do ISS porque quem faz isso é o próprio prestador de serviço e não o tomador, pois quando o prestador emite a Nota Fiscal o valor do ISS já sai nela. Ademais, sabemos que a controvérsia que gira em torno do ISS cinge-se, à luz da legislação municipal dos municípios, nos casos onde empresas que prestam serviços em uma determinada cidade e possuem sede em outra, são bitributadas por mais de um ente público devido à divergência em saber qual deles é realmente o ente competente para recolher o imposto que, conforme cediço tem como fato gerador a prestação de serviços constantes na lista anexa à Lei Complementar 116 de 2003, sendo um imposto de competência dos municípios e do Distrito Federal.

Refletindo um pouco sobre o assunto, uma vez que o ISS é de competência dos municípios e do DF, não é difícil entender que tal possibilidade é uma, dentre outros fatores, que acabam por ajudar ainda mais no conflito de competência entre os municípios. Diga-se de passagem, em comparação à legislação de outros países, o Brasil é um dos poucos ao redor do mundo que ainda delegam esse tipo de competência ao ente municipal.

À vista disso poderíamos até pensar que o ideal seria então transformarmos o ISS em um imposto de competência estadual e do DF, de modo que na hipótese de conflito de competência, a discussão se concentraria entre 27 federações e não mais entre os 5.570 municípios brasileiros, tendo o valor arrecadado repassado aos cofres municipais. Todavia, é bastante provável que isso não desse nem um pouco certo, pois poderia acontecer desse valor não chegar aos municípios de forma proporcional uma vez que temos municípios brasileiros com populações muito maiores, em detrimento de outros com populações bem menores onde a prestação de serviços é consequentemente menor.

De qualquer forma o motivo principal da briga pelo ISS não reside realmente nesse ponto, ele acontece devido à extrapolação interpretativa que os municípios fazem da Lei Complementar 116/03, o que, em tese, é justamente o que não deveria acontecer uma vez que o direito tributário adota a tipicidade fechada defendida pelo STF e por parte da doutrina majoritária. Significa dizer, grosso modo, que a legislação tributária deve elencar todos os elementos do fato gerador (material, espacial, temporal, alíquota, base de cálculo, sujeito passivo e ativo), de modo a não deixar nenhuma “ponta solta” que dê margens a uma possível extrapolação de interpretação do Fisco.

Por outro lado, como o direito não é uma ciência exata, certo é que toda matéria deve ser analisada ao caso concreto, pois a discussão acerca da competência do recolhimento do ISS parte do que poderíamos entender como “estabelecimento prestador” já que o art. 3° da LC 116/03 prevê que o ISS é devido no local do estabelecimento prestador ou, na falta desse estabelecimento, no local do domicílio do prestador.

Nesse sentido, no julgamento do Agravo Interno do REsp 1.891.067/RJ, julgado em 19/10/21, de relatoria do Ministro Mauro Campbell Marques, a Segunda Turma do STJ firmou entendimento de que à exceção de serviços de construção civil, o ISSQN é devido ao município do local da sede do prestador de serviço. (AgInt no AREsp n. 1.891.067/RJ, relator Ministro Mauro Campbell Marques, Segunda Turma, julgado em 19/10/2021, DJe de 25/10/21.)

A priori, poderíamos pensar que o legislador impôs tal hipótese observando que muitas empresas possuem sede em um município, mas prestam serviços iguais em vários e se fossemos olhar pela lógica de que a hipótese de incidência do ISSQN se dá no município em que o serviço foi efetivamente prestado, então todos os municípios fariam jus ao imposto, resultando, assim, na bitributação.

Nesses casos, há quem possa se perguntar: ora, mas se o ISSQN é um imposto que tem como fato gerador a “prestação de serviço”, existe alguma lógica de seu recolhimento se fazer no município onde de fato não ocorreu esse serviço, mas onde está apenas localizado o estabelecimento do prestador?

Em análise ao caso concreto, foi nesse entendimento que a Primeira Turma do STJ julgou o Agravo Interno do Resp 1.865.324/DF, em 6/12/2021, vejamos: “na hipótese dos autos, o Tribunal de origem adotou entendimento em divergência a esta orientação jurisprudencial, considerando legítima a cobrança do ISS pelo local da efetiva prestação do serviço, razão pela qual ratifica-se a decisão agravada.” (AgInt no AREsp n. 1.865.324/DF, relator Ministro Manoel Erhardt (Desembargador Convocado do Trf5), Primeira Turma, julgado em 6/12/21, DJe de 9/12/21.)

Diante da controvérsia, nem mesmo o art. 4° da LC 116/03 ajuda, o mesmo prevê que “considera-se estabelecimento prestador o local onde o contribuinte desenvolva a atividade de prestar serviços, de modo permanente ou temporário, e que configure unidade econômica ou profissional, sendo irrelevantes para caracterizá-lo as denominações de sede, filial, agência, posto de atendimento, sucursal, escritório de representação ou contato ou quaisquer outras que venham a ser utilizadas.”

Conforme explica a professora Misabel Derzi Abreu Machado: “estabelecimento prestador do serviço é o complexo de coisas, como unidade econômica, que configure um núcleo habitual do exercício da atividade, supondo administração e gerência mínima, apta à execução do serviço. Tanto pode ser a sede, matriz, filial, sucursal, ou agência, sendo irrelevante a denominação do estabelecimento e a centralização ou não da escrita da pessoa. O local onde se situa cada unidade econômica – assim entendido aquele do estabelecimento prestador de serviço – atrairá a incidência da norma municipal respectiva.” (Curso de Direito Tributário Municipal, Organização Heleno Taveira Torres, São Paulo: Saraiva, 2009, p. 348.)

Nos casos das empresas mineradoras, grande parte delas possuem unidades muito bem estruturadas em diversas cidades do País, podendo se encaixar no conceito de unidade econômica, mas isso, via de regra, não acontece com as prestadoras de serviço. Em 2014 a Segunda Turma do STJ já havia se posicionado de que o simples deslocamento de recursos humanos (mão de obra) e materiais (equipamentos) para a prestação de serviços não impõe sujeição ativa à municipalidade de destino para a cobrança do tributo (AgRg no AREsp 99.489/MS, Rel. Ministro Herman Benjamin, Segunda Turma, DJe 18.6.2014).

Com efeito, ainda que as terceirizadas sejam contratadas para prestarem serviços dentro das próprias unidades das mineradoras, seus setores administrativos e de gerência ficam concentrados na sede ou filial da empresa, porém essa mesma turma, no julgamento do REsp 1.774.005/SP, entendeu que se tratando de fato gerador do ISSQN ocorrido na vigência da Lei Complementar n° 116/03, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça é firme no sentido de que o sujeito ativo da relação tributária é mesmo o município no qual o serviço foi efetivamente prestado:

PROCESSUAL CIVIL. TRIBUTÁRIO. ISSQN. ENTIDADE EDUCACIONAL. MUNICÍPIO COMPETENTE PARA A COBRANÇA. FATO GERADOR NO MUNICÍPIO QUE O SERVIÇO É EFETIVAMENTE PRESTADO. I – Na origem, trata-se de ação ajuizada por Fundação Escola de Comércio Álvares Penteado – FECAP contra o Município de São Paulo objetivando a anulação de débitos de ISS. Na sentença, julgou-se procedente o pedido. No Tribunal a quo, a sentença foi mantida. Esta Corte conheceu do agravo para negar provimento ao recurso especial. II – A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça é firme no sentido de que em se tratando de fato gerador do ISSQN ocorrido na vigência da Lei Complementar n. 116/2003, o sujeito ativo da relação tributária é o município no qual o serviço foi efetivamente prestado. Confiram-se: (AgInt no REsp 1.774.005/SP, relator Ministro Herman Benjamin, Segunda Turma, julgado em 11/6/2019, DJe 1/7/19, AgInt no AREsp 912.524/BA, relator Ministro Herman Benjamin, Segunda Turma, julgado em 21/2/17, DJe 18/4/2017 e AgInt no REsp 1.571.638/MG, relator Ministro Og Fernandes, Segunda Turma, julgado em 7/2/17, DJe 14/2/17.) III – Agravo interno improvido. (AgInt no AREsp n. 1.619.975/SP, relator Ministro Francisco Falcão, Segunda Turma, julgado em 12/9/2022, DJe de 14/9/22.)

Se fossemos analisar o caso hipotético trazido neste artigo com base meramente no entendimento acima, a empresa contratada não assiste razão o que, consequentemente, significa dizer então que são competentes para fazer o recolhimento do ISS todos os municípios onde localizam-se as unidades da empresa contratante em que a contratada prestou serviço acarretando, assim, em uma bitributação. Logo, podemos até afirmar que o STJ andou mudando um pouco de posicionamento nos últimos anos, mas uma vez que quase tudo no direito depende de uma análise da matéria ao caso concreto, seria incorreto, portanto, afirmarmos que essa é a regra.

Fonte:  https://www.migalhas.com.br/depeso/374143/a-bitributacao-do-issqn-breves-consideracoes

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