ISS, conceito de serviço e contratos complexos
De longa data, a doutrina e a jurisprudência têm se posicionado no sentido de que, muito embora o texto constitucional tenha atribuído aos municípios a competência para tributar os serviços de qualquer natureza (ISS), essas atividades, também em consonância com a própria Constituição Federal, para que sejam tributáveis pelo referido imposto, além de consistirem na prestação de serviço não compreendido na competência tributária dos estados e do Distrito Federal, devem estar previstas em Lei Complementar e reunir as características de um negócio jurídico envolvendo uma obrigação de “fazer”, e não uma obrigação de “dar”.
Esse conceito de serviço baseado na dicotomia existente em obrigações de “dar” e de “fazer” encontra fundamento na doutrina civilista, à luz das definições do Código Civil de 2002, mais especificamente os artigos 233 a 246 (obrigação de dar coisa certa) e 246 a 247 (obrigação de fazer).
Antes mesmo da edição da Lei Complementar nº 116, de 2003 (que dispõe sobre o ISS em âmbito nacional), o Supremo Tribunal Federal (STF), em 2001, quando julgou o Recurso Extraordinário RE 116.121-3/SP, se posicionou pela inconstitucionalidade da exigência desse imposto sobre a atividade de “locação de bens móveis”, por consistir em obrigação de “dar”, consistente na entrega de bem locado e não propriamente em obrigação de “fazer” do qual decorre um esforço humano em favor de terceiro, defendendo um conceito inflexível de prestação de serviços tributáveis pelo ISS.
Apesar desse entendimento ter sido reiterado ao longo dos anos posteriores ao julgamento, o próprio STF, em 2009, ao analisar o Recurso Extraordinário – RE nº 592.905/SC, em que se discutia a incidência do ISS sobre as operações de arrendamento mercantil (leasing), relativizou, pela primeira vez, a possibilidade de incidência desse imposto também em relação a obrigações de “dar”, com a ressalva de que essas atividades estavam essencialmente ligadas também a um “fazer” indissociável.
Por outro lado, em 2010, o mesmo STF aprovou a edição da Súmula Vinculante 31, confirmando que é “inconstitucional a incidência do imposto sobre serviços de qualquer natureza – ISS sobre locação de bens móveis”.
O posicionamento da jurisprudência parecia, até então, pacificado no sentido da incidência do ISS apenas em relação às atividades que reuniriam as características de uma obrigação de “fazer”. Entretanto, esse posicionamento, que já havia sido contrariado em 22 de fevereiro de 2011, no julgamento do Agravo Regimental na Reclamação nº 8.623/RJ, quando o STF entendeu pela possibilidade de incidência desse imposto nas atividades de cessão de direito de uso de marca (ainda sem repercussão geral declarada), voltou a ficar controvertido, com a decisão proferida pela corte suprema em 2016 no RE 651.703.
Em tal julgamento, o STF definiu a constitucionalidade da exigência desse imposto sobre atividades realizadas pelas operadoras de planos de saúde, ampliando esse conceito, segundo o qual o ISS incidiria sobre todos os produtos da atividade econômica não enquadrados como bens materiais, desde que sua tributação estivesse prevista na lista anexa à LC 116, de 2003, e não mais apenas em relação às atividades que reunissem as características de obrigações de “fazer” propriamente dita, passando a admitir um conceito mais elástico de prestação de serviços baseado entre bens e serviços fruto da atividade econômica.
A partir de então, alguns juristas passaram a entender que, sob a ótica da jurisprudência do STF, o conceito de serviço tributável pelo ISS teria evoluído, diante dessa conceituação econômica da prestação de serviço passível da incidência tributária desse imposto, admitindo um suposto caráter residual do ISS frente à competência para fins de tributação do ICMS, principalmente ao analisar as novas tecnologias que têm pautado as relações empresariais.
Contudo, mais recentemente, o próprio STF, ao julgar a incidência do ISS em contratos complexos, voltou a fundamentar o seu entendimento sobre a correta tributação desse imposto com base na dicotomia civilista do conceito obrigação de “fazer” e obrigação de “dar.
Em 29 de maio de 2020, a corte suprema, ao entender pela constitucionalidade da tributação do ISS sobre contrato de franquia empresarial (especialmente licença de marca) e outros serviços indissociáveis, voltou a pautar sua decisão com base na definição civilista de serviço (STF, RE 603.136, relator ministro Gilmar Mendes, Tema 300).
Ato contínuo, esse mesmo STF, no julgamento da ADI 3.142, ocorrido em 5 de agosto de 2020, decidiu como legítima a tributação do ISS sobre contratos de compartilhamento de infraestrutura (locação, sublocação, arrendamento, direito de passagem ou permissão de uso, compartilhado ou não, de ferrovia, rodovia, postes, cabos, dutos e condutos de qualquer natureza – subitem 3.04 da Lista de Serviços anexa à LC 116/2003), naqueles casos em que o arranjo contratual revela uma relação complexa que não seja possível segmentação em uma mera obrigação de “dar” ou “fazer”.
Por outro lado, ao final de 2021, essa corte deu um passo atrás nessa definição, ao julgar o Tema 590 com repercussão geral reconhecida, que definiu pela constitucionalidade da incidência do ISS sobre contratos de licenciamento ou de cessão de softwares desenvolvidos para clientes de forma personalizada, fundamentando o seu entendimento na decisão proferida pelo próprio STF quando julgou as ADIs 5.659 e 1.945, em que se analisou o caráter constitucional de dispositivos que previam a incidência de ICMS nas operações com software.
Vale notar que, no referido julgamento do RE 603.136, o relator ministro Gilmar Mendes defendeu que o ISS deve incidir tanto sobre a atividade fim dos serviços – cessão do direito de uso da marca – como quanto em relação à atividade meio desse contrato, como por exemplo treinamentos, por entender pela unicidade contratual e seu caráter complexo.
É possível, inclusive, que tenhamos novos contornos dessa discussão quando a corte suprema julgar o Tema 1.210 da Repercussão Geral, envolvendo a incidência desse imposto na cessão de direito de uso de marca (RE 1.348.288).
Diante da falta de uniformidade desse entendimento, considerando principalmente esses últimos julgados do STF voltados às operações contratuais complexas sujeitas à tributação do ISS, qualquer tipo de atividade prevista nessa relação contratual seria passível de incidência desse imposto, independentemente de consistirem em obrigações definidas pelos civilistas como “dar” ou “fazer”. A todo rigor, mesmo em se tratando de obrigação de “dar”, caso haja um “fazer” indissociável, já haveria elemento suficiente para tributar os frutos da relação contratual, pelo ISS.
Assim, considerando os posicionamentos mais recentes da jurisprudência pátria e diante do cenário de dúvida a respeito da conceituação de serviço para fins da incidência do ISS, estimulou-se a melhor estruturação contratual que envolva uma gama de atividades passíveis (ou não) de atração da incidência desse imposto, de modo a se realizar a segregação ou dissociação dessas atividades, ao menos para se identificar perfeitamente a natureza de cada contraprestação decorrente do negócio jurídico celebrado.
Nesse contexto, também devem surgir novas discussões envolvendo a própria substância dessas relações complexas, sob a égide da incidência do imposto em relação à atividade-meio realizada, objetivando atingir a atividade-fim, que potencialmente seriam contaminadas pela incidência desse imposto de maneira equivocada, à luz dos mencionados entendimentos.
Diante do cenário de indefinição da própria conceituação dos serviços passíveis de tributação pelo ISS, ganha força a reflexão quanto a necessária atenção na formulação de relações contratuais complexas e na perfeita definição das atividades decorrentes. Contudo, de nada adiantará tal atenção se a própria jurisprudência não apresentar um cenário mais claro e certo quanto à conceituação de serviço para fins de tributação pelo ISS ou mesmo cuidar de submeter adequadamente à tributação, apenas a atividade-fim buscada pela relação contratual estabelecida.
Fonte: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/iss-conceito-de-servico-e-contratos-complexos-02052022