Mottainai, o segredo da filosofia japonesa para evitar o desperdício
A alegre aldeia de pescadores de Murakami fica a apenas três horas de trem da capital do Japão, Tóquio. Mas ela parece estar a anos-luz de distância do burburinho daquela que é a cidade mais populosa do mundo.
Murakami é uma cidade-castelo preservada no tempo, na prefeitura de Niigata. Vim até aqui para conseguir uma trégua do barulho e da correria do Japão urbano e jantar no renomado restaurante Idutsuya.
O restaurante fica em uma pousada que, um dia, foi apadrinhada pelo poeta e mestre zen Bashō (1644-1694). Seu salão é tão sereno quanto uma sala de meditação zen.
Nele, saboreio uma dúzia de iguarias de salmão diferentes, servidas como verdadeiras joias sobre uma bandeja laqueada.
Sêmen de salmão em conserva. Pele crocante, frita em óleo fervente. Patê de fígado do peixe. A sucessão de petiscos salgados é uma sinfonia de sabores e texturas.
Todas as partes do peixe, desde o cobiçado o-toro (a valiosa gordura da barriga do animal) até os órgãos, encontram expressões deliciosas. As próprias espinhas e os dentes são transformados em gel com sabor umami (um dos cinco gostos básicos do paladar humano) e consumidos sobre o arroz.
A refeição – uma ode comestível ao peixe sedoso de carne cor de laranja – é uma bela expressão do ideal japonês de mottainai, a busca de formas criativas de eliminar o desperdício.
Mottainai pode ser traduzido como “que desperdício!”. Mas a expressão está mais próxima do velho provérbio “sabendo usar, não vai faltar”.
Este ideal de minimizar o desperdício gerou peculiaridades culturais na vida do Japão, como reciclar a água da lavagem das mãos para os toaletes; velhos quimonos transformados em suntuosos cachecóis; ou o kintsugi, a tradição de restaurar cerâmica quebrada unindo os pedaços com ouro fundido.
Mas este princípio certamente se encontra mais arraigado na cozinha japonesa.
Como a necessidade é a mãe da criatividade, pescadores e agricultores encontraram formas engenhosas de transformar restos, como cascas, cortes de carne dura e borras de saquê, em refeições nutritivas e deliciosas.
Como o ratatouille do interior da França e o pani câ meusa italiano (pão recheado com carne de órgãos grelhada), a escassez foi a musa inspiradora de simbólicos pratos da cozinha japonesa, como o ochazuke (chá verde despejado sobre restos de arroz), kasuzuke (vísceras de peixe em conserva no saquê) e kasu jiro (uma farta sopa feita com restos de mosto de saquê).
O mottainai remonta a tempos de escassez, mas seu princípio permanece sendo a base dos restaurantes de sushi e kaiseki de hoje em dia – até os mais opulentos do mundo.
Estimulando os sentidos
Encontrar formas de cozinhar todas as partes de plantas e animais não serve apenas para reduzir o custo dos alimentos e adequar a cozinha aos objetivos globais de sustentabilidade.
Restos como caules, cortes e vísceras – os “pedaços horríveis”, para tomar uma frase do crítico de gastronomia Anthony Bourdain (1956-2018) – costumam trazer sabores memoráveis nas mãos de um chef especialista.
A poucos quilômetros de Murakami, à sombra dos Alpes japoneses, fica o restaurante Satoyama Jujo, indicado pelo guia Michelin. Sua chef é Keiko Kuwakino.
Depois de passar um período viajando pelo mundo como mochileira e estagiária em cozinhas da Austrália, Europa e Índia, Kuwakino voltou para Niigata. Ela passou a elaborar menus kaiseki, com vários pratos sazonais. É uma forma de enaltecer a abundância de águas frias e vales frondosos da sua prefeitura natal.
Encontrei Kuwakino na cozinha do Satoyama Jujo, um espaço de trabalho rodeado de vidros coloridos com raízes e ervas em conserva.
Com sua obsessão em reduzir o desperdício de alimentos, Kuwakino se inspirou na sobriedade da avó.
“Vovó cresceu em uma aldeia de escassos recursos, onde a neve cobria os campos por cinco meses do ano”, relembra a chef.
“Ela sempre insistia em não desperdiçar um único grão de arroz, relembrando meus irmãos e eu sobre o trabalho e o sacrifício do cultivo de arroz”, ela conta. “Ainda me lembro disso quando como e cozinho arroz para meus clientes.”
Embora aprecie ingredientes de destaque da cozinha japonesa, como caviar, ouriço-do-mar e cogumelos matsutake, Kuwakino também tem o dom de transformar os restos mais humildes em deslumbrantes pratos gourmet. Caules folhosos são transformados em belas decorações, espinhas de peixe se tornam alimentos com sabor umami e raízes rígidas passam a ser delícias crocantes depois de temperadas com salmoura.
Nas horas que antecedem o jantar, Kuwakino e sua equipe pulverizam espinhas de peixe desidratadas com pó pungente – um pó mágico deliciosamente salgado como a brisa do oceano.
Esse pó dá vida à gordurosa carne bovina wagyu e tigelas de arroz, além de brilhar no kenchinjiru, uma sopa feita de vegetais, como berinjela e batata-doce, e também de cogumelos – todos sazonais e recém-colhidos.
Polvilhar as partículas salgadas sobre os alimentos submersos em um caldo cor de chá oolong fornece um sabor tão rico quanto o-toro marmorizado.
As próprias cascas descartadas durante o preparo do kenchinjiru ganham nova vida. Armada com um desidratador e um moedor, Kuwakino se prepara para a alquimia das cascas de beterraba, abóbora e cenoura. Ela transforma as cascas em pós de cor púrpura, amarela e laranja.
“Tento estimular todos os sentidos com a minha comida”, explica a chef. “Adoro pós vegetais, não só pelo seu sabor terroso, mas pelas cores salpicadas que eles acrescentam aos pratos.”
Antes de começar o primeiro prato – uma entrada de tofu fresco, melão e sardinhas em conserva – Kuwakino se aproxima da minha mesa para o tradicional itadakimasu, a expressão japonesa de gratidão pela vida que se sacrificou pela refeição.
O mottainai é profundamente ligado aos princípios do xintoísmo, uma antiga religião japonesa enraizada nas crenças animistas das sociedades caçadoras-coletoras da pré-história do arquipélago.
“No xintoísmo, objetos naturais como a madeira, plantas, animais e até as pedras têm natureza sagrada”, explica Kuwakino. “Tudo o que é recolhido da natureza é imbuído de kami [espírito divino].”
O caráter sagrado atribuído aos produtos da natureza eleva o mottainai ao nível de dever sagrado. Jogar comida fora – mesmo que sejam restos – é como um sacrilégio.
O mestre de sushi Masa Takayama, de Nova York, nos Estados Unidos, compartilha o sentimento de que o desperdício de alimentos e até mesmo de água causa uma sensação de haji (vergonha ou tristeza).
O Masa, em Manhattan, é um restaurante omakase – onde o chef escolhe os pratos de sushi que serão servidos aos clientes – que conta com três estrelas Michelin. Takayama usa todas as partes de cada peixe que passa pela sua mesa de corte, até as espinhas, os olhos e a carne extraída da cabeça.
“Quando compro um peixe, lembro que ele já teve vida”, ele conta. “A partir do respeito pela criatura, encontro formas de cozinhar tudo.”
Por isso, os cortes mais delicados do peixe viram sashimi, enquanto Takayama ferve as cabeças, as caudas e as espinhas para produzir molhos de especiais noturnos ou makanai – refeições para as famílias dos funcionários.
Um prato especial permanente do menu do Masa é a cabeça de buri grelhada. O peixe é trazido dos mercados de Tóquio todos os dias e sua carne é transformada em sashimi totalmente branco e quase translúcido – carne suavemente salgada, etereamente clara, banhada em molho ponzu e guarnecida com flores de shissô.
Mas o verdadeiro ponto forte, segundo Takayama, é a cabeça, uma massa óssea coberta de carne marmorizada.
“Fui criado no Japão e meus pais guardavam as cabeças de peixe para refogar com molho de soja e os líquidos residuais da produção de tofu”, conta Takayama. “A carne da cabeça, onde o peixe armazena boa parte da sua gordura, oferece o melhor sabor umami.”
Depois de marinada com molho de soja e levemente grelhada, a carne da cabeça, mole como geleia e ornamentada com pimenta shishito torrada, realmente é a alma da riqueza umami.
De volta a Murakami, caminho pelas estreitas alamedas da aldeia, pavimentadas com pedras, até a aconchegante casa de chá Kokonoen, construída com cipreste japonês, com cor de areia.
Sentado em frente a um elaborado jardim zen, provo um fragrante chá verde sencha – um verdadeiro jade líquido, perfumado e complexo como um bom e envelhecido vinho Pinot Noir. Com ele, provo chazuke (confeitos em forma de joias, preparados com morangos, amoras e outras frutas da região).
Cada porção que sai da chaleira laqueada traz novos sabores das folhas aromáticas. São sutilezas a serem contempladas com a beleza do jardim e da caligrafia do local.
Depois que as folhas são finalmente exauridas, o mestre do chá as retira da chaleira com uma pinça de madeira e as coloca sobre uma tigela de arroz fresco.
De coloração verde brilhante e macio como espinafre cozido, o sencha libera as últimas fragrâncias do buquê marinho e de pinho do chá verde.
Enlevado pela cafeína e pela teobromina do chá, não posso deixar de concordar com os sábios xintoístas.
As bênçãos da natureza são sagradas. São milagres do solo, do sol e da chuva, preciosos demais para serem simplesmente descartados.
Fonte: https://www.bbc.com/portuguese/articles/cz9m0gr57dpo