Felipe Drumond: ‘Máquina inchada e Estado mínimo não colam mais. A reforma é sobre o Estado melhor’

Dentro desse tema das carreiras e das disparidades e possíveis distorções, entra o assunto das negociações. Reformar o Estado passa por dar mais transparência aos rendimentos, em todos os Poderes?
Com certeza. Infelizmente, tem um legado de muitas camadas que vão se acumulando, formando uma estrutura mais difusa, confusa e difícil de entender. A simplicidade tem que ser um pilar básico. Todos os países que trabalharam nessa discussão buscaram simplificar suas bases salariais.
No próprio Executivo, você tem carreiras que recebem por subsídio, outras por vencimento básico, com vários tipos de adicionais, com gratificações regulamentadas por decreto, como no caso da Receita.
Tudo é muito particular de cada um. É tudo muito confuso. Sinceramente, a gente tem que mudar nosso modelo para uma remuneração simples, baseada em tabela salarial.
O próprio caso das carreiras da magistratura, dos membros do Poder. Os juízes têm uma complexidade de trabalho elevada. A pessoa está tomando decisões sobre a vida dos outros. É inegável que essas pessoas tenham que ganhar melhor, mas o teto não está sendo factível.
Então, vamos discutir o teto. Se a gente acha que existem servidores que têm que ganhar determinados honorários, acho que a gente tem que discutir o teto, e pensar que pode ser até melhor para eles.
A gente tem que parar de buscar contornar as coisas. Quando você tem um sistema com pouca transparência e com pouca governança, ele é contornado e gera distorções.
Quando olhamos as pesquisas que falam do Executivo, vemos aumentar nas últimas décadas a evolução das carreiras mais fortes, que não segue uma técnica lógica. Segue uma lógica política.
Em relação às exigências, precisamos de especialistas técnicos que decidam isso. Não é uma discussão política. A gente trata isso como uma discussão política diz muito sobre o nosso país, sobre o nosso estágio de desenvolvimento. Aquilo ali é recurso público!
Países do mundo afora têm critérios de complexidade, critérios técnicos, pesquisas de remuneração do público e do privado, que são a base da negociação e da definição dos investimentos. As tendências tendem a ser em tabelas únicas, os reajustes tendem a ser os mesmos.
Aqui no Brasil, a gente tem uma lógica de que, dependendo de quem para o governo e para qual carreira ele vai estar mais orientado, alguém vai ganhar mais, outros não vão ganhar ou vão ganhar menos. Essa disparidade traz uma perda, e vai se acumulando em camadas.
Isso gera um sistema que vai pingando toda hora uma gotinha até que explode. A gente tem que ser bem sincero porque esse nosso modelo não conseguiu entregar aquilo que esperava do serviço público.
Não tem dinheiro para pagar um salário super alto para todo o mundo, e nem é o caso de conseguir estabelecer prioridade de quem vai ganhar bem ou mal. As pessoas têm que ganhar aquilo que é justo.
Outros países conseguiram passar por esse caminho. A gente tem que ter a série de, enquanto país, desenhar uma reforma que dê a capacidade de fazer isso. Pessoalmente, acho que as pessoas não têm nem capacidade legal, nem institucional, para ir nesse caminho.
Cada estado, cada município, cada carreira federal tem suas legislações… Cada um tem uma autonomia muito grande, o CNJ, o CNMP têm sua autonomia em relação aos periódicos, e a gente não tem nenhuma governança geral em relação a esses pontos.
Até quem defendeu a versão final da PEC 32 viu graves erros políticos na condução do processo. Esse discurso de “estado mínimo” ou de “máquina inchada” já não cola mais?
Já não cola mais. Naquele momento da discussão do PEC, teve muito estudo, teve muito trabalho, a gente se aprofundou. Todo mundo se aprofundou no tema. O grande resultado foi abandonar a discussão de que a Reforma Administrativa sobre o Estado menor. A Reforma Administrativa é sobre o Estado melhor.
Eu acho que a discussão se vai privatizar, se vai ser pública ou privada, de como vai ser para outra esfera, a PEC 32 não conseguiu passar essa mensagem com os pés no chão.
A própria esquerda brasileira não gosta de discutir reforma porque ela sempre esteve muito associada a uma visão de diminuição do papel do Estado, o que é muito triste.
A gente precisa ver direita e esquerda debater o tema de forma séria, principalmente quando a gente não está falando do governo federal, mas estamos falando de uma reforma do Brasil, dos Estados, dos municípios, que são 90% da população.
Existe um debate sobre a estabilidade de carreiras, chamadas típicas de Estado e uma diferenciação com outras, que atuam na ponta, como na saúde e na educação… Na sua avaliação, a estabilidade deve ser para todos os servidores?
Já existe hoje de forma flexível. Você pode contratar professor temporariamente, pode transformar a gestão da rede de saúde, via PPP, concedendo, por diversas modalidades. As grandes áreas de política pública já estão, de uma forma ou de outra, se virando para conseguir executar seus serviços de forma mais flexível. A realidade sobrepõe-se à falta de recursos também.
Agora, no meu ponto de vista e em muitos países, a estabilidade e a autonomia funcional garantem a autonomia profissional frente a interesses que não são republicanos. Para defender, acima de tudo, a sociedade, o Estado e o cidadão.
Por isso, a gente tem que ter um corpo permanente. Isso também é uma questão de efetividade. A autonomia funcional é uma das coisas mais importantes para o país. Dentro de uma escola, você terá situações que podem beirar a corrupção, que podem beirar a perseguição política, que podem beirar o assédio.
Você pode colocar um diretor com determinada orientação política. Se aquele professor não tiver uma certa autonomia, ele se tornará capacitado, mas, provavelmente, não poderá ser demitido.
Não acho que tenhamos que enfraquecer a autonomia funcional nem para o fiscal da Receita, nem para o professor.
A flexibilidade se dá de outras formas, se bem geridas. Você pode ter uma boa educação realizada de outra forma, mas deve ter um tempo bom para fazer a gestão. E esse tempo tem que ter essa autonomia funcional porque não pode aceitar a propina numa PPP.
Isso é garantido através da estabilidade. De um lado, o primeiro ponto é continuar no modelo onde a estabilidade para todos, e, por outro lado, que a gente discrimine menos o servidor.
Isso é histórico do Brasil. Em todas as áreas que podemos pensar, gostamos muito de separar as coisas. No lugar de colocar leis para todo mundo e regras para todo mundo, a gente separa. Eu quero que todo servidor brasileiro permanente tenha autonomia, tenha proteção.
Agora, essa proteção pode ser grande demais. Você pode ter uma proteção que mal medida, que, mal gerenciada, favorece o servidor que não tem um bom desempenho.
Então, em algum momento, essa proteção passa por limites, ela pode ser contra a própria administração pública. É interessante para a administração pública, para o Estado e para a sociedade que pessoas com mau desempenho sejam desligadas.
Acho que hoje existe sim exagero das proteções contra o desligamento do servidor. A gente precisa aprimorar esses instrumentos, não falar que um grupo não tem nenhuma proteção e outro continua sendo aprimorado, protegido da forma que é hoje.
Não há uma contradição falar em defesa da estabilidade, com capacidade de desligamento do servidor para o mau desempenho?
Não, porque é totalmente possível fazer um bom processo de desligamento que não fira a estabilidade. Eu não posso deixar a perseguição. Como é que a perseguição se dá? Se eu tenho, por exemplo, só uma chefia avaliando aquela pessoa, se aquela chefia acha aquela pessoa ruim, manda ela embora.
Se essa pessoa estiver mal, vamos mudar ela de setor, vamos fazer com que tenhamos uma comissão só de servidores efetivos acompanhando essa pessoa, de diferentes pessoas. Vamos criar um processo onde a gente dê oportunidade, onde a gente dê incentivos, capacite.
Você garantiu que os servidores permanentes acompanharam, deram oportunidade para trabalhar em outros setores. Se, depois disso, não melhorou, ai sim, pode falar em desligamento. Vai precisar desenhar um processo que tenha um certo rigor, mas que precisa existir.
A gente tem que ter alguns processos com rito sumário para alguns tipos de comportamento e também para algumas questões.
Estabilidade não é direito, é dever. Prestar um bom serviço para a sociedade. Então, a partir do momento que uma pessoa não tem condições de fazer isso, de cumprir com o que o interesse público necessita, ela tem que ter um processo que gere desligamento. O trabalho não é para o servidor, é para o cidadão.
Reforma administrativa que não seja vinculante para estados e municípios, é uma reforma administrativa?
Muito pouco. Apenas 9% do serviço público está na União. 91% estão nos estados e nos municípios. A União tem problemas? Tem. Mas na União tem sido feito um trabalho nas últimas gestões, nessa gestão, de transformação, de melhoria. Tem sido um avanço significativo.
Mas se a gente pensar uma reforma administrativa, é uma reforma que passa pela Constituição. Assim como a tributação. Seria uma reforma tributária se a gente discutisse só os tributos da União? Não seria.
Seria uma reforma trabalhista se eu tratasse de 20% da CLT? Não seria. Assim como não vai ser uma reforma administrativa se eu tratar de 9% de serviço público e deixar de fora mais de 5.500 municípios.
Se eu não pensar numa reforma que atinja todos eles, não vai conseguir ter a densidade de alcance que precisa ter.
É inocência nossa achar que todos os estados e todos os municípios terão condição de aumentar o vínculo de trabalho temporário, que é complexo. É inocência achar que vai partir deles uma modernização das cargas comissionadas de forma estrutural, de forma coletiva. Felizmente, eu vi o próprio Congresso com essa visão.
Se o governo não der o sinal verde para que se dialoge sobre uma PEC, vê as condições desse debate evoluir no Congresso?
Confesso que não tenho muitas leituras da variável política em torno desse tema. Agora, se o Congresso se propor a fazer uma discussão de Estado melhor, pactuar que não vai discutir estado menor, uma conversa madura entre os dois, acho que é interessante que o governo entre no debate.
Acho que sem o governo nessa discussão, perde-se muita qualidade técnica, perde-se muito. O governo pode embargar essa agenda, mas eu tenho muito medo de que quanto mais a gente posterga, mais ela pode cair em um momento errado.
O governo que, na oposição, foi tão crítico à PEC 32, está dentro da administração pública. Se não for fazer essa discussão nesse período, corre risco de estar numa situação muito mais frágil para fazer esse debate em 2026 ou em 2031, ou seja lá quando for, porque vivemos em uma democracia.
Uma hora os lados mudam, não é? Então, tem que se pensar muito bem nisso, porque não participar de um debate agora pode fazer com que tenhamos depois um debate menos diverso.
Por mais que a gente tenha um Congresso hoje com orientação mais direita, a gente tem um governo com outra orientação. A receita de países de sucesso mostra que a diversidade traz boas propostas.
A gente tem, talvez, um dos melhores cenários para essa discussão agora, porque a gente vai ter uma diversidade. Ao mesmo tempo, com a PEC 32, estamos aprendendo muito. A gente tem uma academia que produz muito, todo mundo tem treinado o tema.
Eu acho que é muito importante fazer isso dentro do equilíbrio de forças, que seria esse cenário agora, não perca essa oportunidade.
Fonte: Jota.